Deriva Epistemológica: Quando a IA Começa a Acreditar no que Diz
Durante muito tempo, o debate sobre Inteligência Artificial centrou-se numa pergunta simples:
“O que é que a IA consegue fazer?”
Hoje, essa pergunta já não chega.
A maioria das pessoas que usa IA no dia a dia — em empresas, projetos criativos, relatórios, planeamento ou comunicação — já percebeu algo mais subtil e mais inquietante:
As respostas da IA são cada vez mais seguras, mais bem escritas, mais convincentes.
Mas nem sempre sabemos se são verdadeiras.
Este fenómeno não é um erro pontual.
Não é um bug.
Não é falta de dados.
É algo mais profundo — e tem um nome:
deriva epistemológica.
O problema não é a IA errar
É errar com confiança
Errar faz parte de qualquer sistema humano ou técnico.
O problema começa quando o erro vem acompanhado de autoridade implícita.
Hoje, muitos sistemas de IA:
- escrevem com fluidez
- estruturam argumentos
- mantêm coerência interna
- apresentam conclusões limpas
Tudo isto cria um efeito psicológico poderoso:
a sensação de que aquilo faz sentido, logo deve estar certo.
Mas coerência não é verdade.
Repetição não é validação.
Confiança no tom não é conhecimento.
Quando um sistema começa a confundir estas coisas, entra em deriva epistemológica.
O que é deriva epistemológica (em linguagem simples)
Deriva epistemológica acontece quando um sistema perde clareza sobre o estatuto do que está a dizer.
Deixa de distinguir bem entre:
- factos observáveis
- inferências plausíveis
- hipóteses
- padrões recorrentes
- construções internas
Tudo passa a soar igualmente legítimo.
O sistema não “mente”.
Não “engana”.
Ele simplesmente fala com a mesma segurança sobre coisas que não têm o mesmo grau de verdade.
E isso é perigoso.
Porque isto acontece — e não é culpa de ninguém
A Inteligência Artificial não “sabe” coisas como um humano.
Ela aprende padrões, relações, recorrências.
Quando uma resposta:
- é frequentemente bem recebida
- soa coerente
- encaixa em expectativas
- é reutilizada
o sistema aprende que aquele tipo de afirmação é aceitável.
Com o tempo, sem referências estáveis, começa a acontecer algo subtil:
- inferências passam a soar como factos
- hipóteses ganham tom de certeza
- conclusões internas são apresentadas como realidade externa
Isto não acontece por mal.
Acontece por ausência de limites epistemológicos claros.
O erro comum: tentar resolver isto com prompts
Quando as pessoas percebem o problema, a reação habitual é:
“Temos de escrever prompts melhores.”
Mais avisos.
Mais regras.
Mais instruções.
Mas isto ataca o sintoma, não a causa.
Prompts ajudam a:
- orientar o tom
- definir o estilo
- limitar temas
Mas não criam maturidade epistemológica.
Um sistema pode obedecer a um prompt e, ainda assim, não saber distinguir bem:
- o que é facto
- do que é inferência
- do que é apenas plausível
Porque a deriva epistemológica é perigosa no mundo real
Este problema deixa de ser teórico quando a IA é usada em contextos reais.
Em empresas
Relatórios, análises, recomendações e planeamento passam a basear-se em respostas que:
- parecem sólidas
- mas não são claramente fundamentadas
Decisões erradas não surgem por falta de dados, mas por excesso de confiança em outputs bem escritos.
Em comunicação pública
Conteúdos gerados por IA podem:
- simplificar demais
- omitir incerteza
- apresentar narrativas “limpas” onde a realidade é complexa
Isto cria desinformação subtil, não intencional.
Em criatividade e estratégia
Ideias exploratórias começam a ser tratadas como conclusões.
Brainstorming passa a parecer plano definitivo.
A criatividade perde espaço — e o risco aumenta.
O verdadeiro problema: ausência de estabilidade epistemológica
A maioria dos sistemas de IA não tem uma base estável de referência para decidir:
- “Isto posso afirmar com segurança?”
- “Isto é apenas uma hipótese?”
- “Isto é interno ou verificável externamente?”
Sem essa base, o sistema navega apenas por:
- coerência
- fluidez
- probabilidade linguística
E isso não chega.
A solução não é censura
É contenção epistemológica
É importante dizer isto claramente:
Resolver a deriva epistemológica não é:
- censurar a IA
- torná-la fraca
- obrigá-la a pedir desculpa constantemente
- enchê-la de avisos legais
Pelo contrário.
A solução é criar contenção epistemológica:
- limites claros sobre o que pode ser afirmado como verdade
- distinção explícita entre modos de exploração e modos de afirmação
- reconhecimento de incerteza sem enfraquecer o discurso
Isto não mata a criatividade.
Protege a credibilidade.
Explorar não é afirmar
E isso tem de ficar claro
Um dos pontos mais importantes — e menos discutidos — é a diferença entre imaginar e afirmar.
Um sistema pode (e deve):
- especular
- explorar cenários
- criar metáforas
- exagerar
- provocar
Desde que isso não seja apresentado como realidade verificada.
O erro não está na criação.
Está na passagem silenciosa da imaginação para a afirmação.
Quando essa transição não é controlada, a deriva instala-se.
Porque uma base de conhecimento bem pensada muda tudo
A verdadeira viragem acontece quando o sistema passa a operar sobre uma base de conhecimento que:
- distingue facto de inferência
- reconhece limites do que é verificável
- evita superlativos fáceis
- valoriza credibilidade a longo prazo
- trata a incerteza como parte do conhecimento
Essa base não serve apenas para “informar”.
Serve para estabilizar a postura cognitiva do sistema.
Em vez de dizer à IA o que responder, ela ensina como decidir se algo deve ser afirmado.
É uma diferença enorme.
O efeito curioso: a IA torna-se mais confiável
sem se tornar mais fraca
Quando isto é bem feito, acontece algo contra-intuitivo:
o sistema não perde força
não fica inseguro
não parece hesitante
Pelo contrário:
- fala com clareza
- assume limites quando necessário
- evita exageros
- ganha autoridade silenciosa
A confiança deixa de vir do tom
e passa a vir da postura.
Porque isto é especialmente relevante agora
Estamos a entrar numa fase em que:
- a IA influencia decisões reais
- a regulamentação começa a apertar
- a confiança passa a ser um critério estratégico
- a responsabilidade deixa de ser abstrata
Regulamentos como o AI Act europeu não pedem sistemas “mais inteligentes”.
Pedem sistemas mais previsíveis, explicáveis e responsáveis.
E isso começa exatamente aqui:
na forma como a IA decide o que pode afirmar como verdade.
Antes de perguntar “o que a IA faz”
devíamos perguntar “como ela sabe o que diz”
Esta é talvez a mudança mais importante de mentalidade.
Durante anos perguntámos:
- “o que consegue fazer?”
- “até onde vai?”
- “quantas tarefas resolve?”
Hoje, a pergunta certa é outra:
Como é que este sistema decide que algo é legítimo afirmar?
Se não soubermos responder a isto,
não importa quão boas sejam as respostas.
Conclusão: maturidade não é saber mais
é saber onde parar
A deriva epistemológica não se resolve com mais dados.
Nem com mais velocidade.
Nem com mais confiança no tom.
Resolve-se com maturidade cognitiva.
Com sistemas que:
- sabem distinguir o que sabem do que inferem
- sabem quando explorar e quando afirmar
- sabem que credibilidade é um ativo de longo prazo
Num mundo cheio de respostas rápidas,
a verdadeira inovação pode ser esta:
uma IA que sabe quando não deve falar com demasiada certeza.
E isso, ironicamente, torna-a muito mais confiável.